Foto: El País

O Brasil é um país de contrastes. E este contraste é sentido na pele. Mesmo representando mais da metade da população brasileira (55%, segundo IBGE), pretos e pardos ainda estão distantes de viver em condições de igualdade com os brancos. Os indicativos mostram isso: somente 46% deles estão no Ensino Superior (IBGE) ao passo que representam 64% da população prisional (Infopen). Eles são as maiores vítimas de homicídio no país (75,5%, segundo último Atlas da Violência), enquanto ocupam menos de 5% dos cargos de direção nas grandes empresas, de acordo com o Instituto Ethos.

Com menos oportunidades e mais vulnerabilidades sociais, a saúde mental desta parcela da população está fragilizada, principalmente para os mais jovens. Dados do Ministério da Saúde apontam que adolescentes e jovens negros têm maior chance de cometer suicídio no Brasil. O risco na faixa etária de 10 a 29 anos foi 45% maior entre jovens que se declaram pretos e pardos do que entre brancos em 2016.

A taxa de mortalidade por suicídio entre jovens e adolescentes brancos, segundo o Ministério da Saúde, permaneceu estável de 2012 a 2016, enquanto que cresceu 12% na população negra com a mesma idade. Os dados são da cartilha Óbitos por Suicídio entre Adolescentes e Jovens Negros, lançada durante o Seminário Nacional de Saúde da População Negra na Atenção Primária.

Psicóloga e pesquisadora em Políticas Públicas de Gênero e Raça, Durvalina Rodrigues acredita que a saúde mental da população negra tem sido historicamente fragilizada no Brasil.

“Os dados mostram que o risco de suicídio para jovens pretos e pardos é maior. Isso dialoga com o racismo estrutural que temos no nosso país. É uma construção histórica, não é de agora. Por exemplo, por muito tempo se vendeu a ideia que nossa história começou na colonização e escravidão, como se não existíssemos antes disto. No século 18, a imagem da pessoa negra foi arquitetada para ser construída como uma pessoa que não é de fato pessoa. Sequer é visto como um indivíduo de fato. Era assim que se enxergava o preto na colonização: um indivíduo sem alma”.

Marcado como um indivíduo cuja única herança histórica é a escravidão, a população negra sobreviveu aos tempos e chegou a contemporaneidade sob lutas por direitos, muitas destas marcando o corpo e a alma dos indivíduos, destaca a pesquisadora Durvalina Rodrigues, pós-graduada em Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça e em Politicas e Gestão do Cuidado.

“Se não tinha alma, o negro era visto como alguém que não sente nada. O que há de mais íntegro no ser humano é sua subjetividade e essência. A partir do momento que a pessoa é ‘coisificada’, tratada como um ‘algo’ e não como ‘alguém’, ela não tem sua subjetividade considerada. Quando a pessoa tem na sua trajetória espaços negados que o legitimem enquanto sujeito, aonde ela vai enquadrar sua essência? O racismo é tão perverso que ele tira dessa pessoa seu sentimento de pessoa. A partir do momento que eu não me percebo, não tenho referenciais, me anulo”.

SENTINDO NA PELE

O diagnóstico precisa ser clínico, mas alguns sinais indicam o comprometimento da saúde mental da população negra. E eles perpassam quase sempre a ausência de políticas públicas que garantam direitos básicos a estas pessoas. É o que defende Jade Mariam Vaccari, 29 anos. Graduada em Filosofia, ela sente na pele as dificuldades de se viver numa sociedade que tem pesos e medidas distintas para cada cor de pele.

“O povo brasileiro é extremamente ignorante e não tem consciência da própria história. Hoje estão voltando com toda força ideias como: ‘a escravidão não foi assim tão ruim’, ‘negros e brancos são iguais na sociedade’, dando uma falsa ideia que o racismo não existe nem existiu, o que o torna naturalizado. Quando não é isso que vemos. A pessoa sem trabalho, sem perspectivas de futuro, muitas vezes é empurrada para a miséria, não é acolhida em muitos espaços. Isso adoece. E explica a fragilidade na saúde mental”, disse.

Jade acredita que, para equilibrar a balança e promover direitos iguais no País, é necessário primeiro reconhecer os descompassos que ainda perduram no Brasil. “Se cria a falsa aceitação do negro, quando sabemos que até hoje o negro é visto como uma pessoa feia, que fede, que tem cabelo ‘ruim’. O Brasil foi o último país a abolir a escravidão negra, mas os negros só mudaram das senzalas para as favelas. O negro continua sendo visto como marginal, feio, inferior. Alguém que não é digno. E não é fácil desconstruir, ainda mais no contexto social e político que vivemos hoje. É uma luta diária”.

MAIORIA DAS VÍTIMAS DE HOMICÍDIO

No Atlas da Violência 2019, foi verificada a continuidade do processo de aprofundamento da desigualdade racial nos indicadores de violência letal no Brasil, já apontado em outras edições do estudo. Em 2017, 75,5% das vítimas de homicídios foram indivíduos negros (definidos como a soma de indivíduos pretos ou pardos, segundo a classificação do IBGE, utilizada também pelo SIM).

A taxa de homicídios por 100 mil de negros foi de 43,1, ao passo que a taxa de não negros (brancos, amarelos e indígenas) foi de 16,0. Ou seja, proporcionalmente às respectivas populações, para cada indivíduo não negro que sofreu homicídio em 2017, aproximadamente, 2,7 negros foram mortos.

Em 2017, a taxa de homicídio de negros por 100 mil habitantes era de 46,4, enquanto a de brancos era 7,1. Em números absolutos, foram 1.227 negros assassinados em 2017, contra 96 não negros naquele mesmo ano. Em dez anos, o crescimento dos assassinatos da população negra paraibana foi de 140%.

A desigualdade racial dos homicídios fica evidenciada ainda mais no caso de Alagoas. Na última edição do Atlas, havia sido apontado que o Estado apresentava a maior diferença na letalidade entre negros e não negros. Contudo, este fosso foi ampliado ainda mais em 2017, quando a taxa de homicídios de negros superou em 18,3 vezes a de não negros.

RACISMO TEM ESTRUTURA HISTÓRICA

Mestre em Ciências Jurídicas, a pesquisadora Terlúcia Silva estuda violência e racismo no Brasil. Ela defende que o contexto vivido pela população negra hoje está ligado, entre outras coisas, à herança de falta de políticas públicas para esta parcela da sociedade. “O racismo na sociedade está posto de forma estruturada historicamente. O Estado contribuiu para que ele permanecesse até hoje. Tudo o que o Brasil viveu na escravidão, a tal ‘abolição’, leis que impediam acesso a educação, decretos que proibiam acesso à terra. Todos foram mecanismos que o Estado criou para impedir que a população negra se mobilizasse socialmente”, destacou.

A pesquisadora enxerga alguns avanços, mas reforça que ainda há muitas falhas no que diz respeito ao Estado.

“Hoje temos avanços, como as cotas raciais nas universidades, que foram importantíssimas para que a população negra pudesse acessar o Ensino Superior. Mas ainda há falhas, como a Lei de 1987, por exemplo, que diz que racismo é crime, mas que não vemos pessoas sendo condenadas por cometer racismo”, disse Terlúcia Silva.

Ela destacou também que, quando comparados negros e brancos, não são aplicadas os mesmos ‘pesos e medidas’ na ótica do Estado.

ASSASSINATOS DE MULHERES

As mulheres negras seguem sendo as mais vulneráveis quando comparados os homicídios no Brasil. De acordo com o último Atlas da Violência, lançado este mês pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), enquanto a taxa de assassinatos de mulheres não negras teve crescimento de 4,5% entre 2007 e 2017, a taxa de homicídios de mulheres negras cresceu 29,9%.

Em números absolutos a diferença é ainda mais brutal, já que entre não negras o crescimento é de 1,7% e entre mulheres negras de 60,5%. Considerando apenas o último ano disponível, a taxa de homicídios de mulheres não negras foi de 3,2 a cada 100 mil mulheres não negras, ao passo que entre as mulheres negras a taxa foi de 5,6 para cada 100 mil mulheres neste grupo.

A desigualdade racial pode ser vista também quando verificamos a proporção de mulheres negras entre as vítimas da violência letal: 66% de todas as mulheres assassinadas no país em 2017.

De acordo com o Ipea, o crescimento muito superior da violência letal entre mulheres negras em comparação com as não negras evidencia a enorme dificuldade que o Estado brasileiro tem de garantir a universalidade de suas políticas públicas.

O Atlas da Violência 2019 mostra que entre 2007 e 2017 foram assassinadas no total 1.124 mulheres. Destas, 999 eram mulheres negras e 125 mulheres brancas. Isso quer dizer que quase 89% dos homicídios no Estado foram de mulheres de pele preta.

PRISÕES FEMININAS

O último Levantamento de Informações Penitenciárias (Infopen), apresentado pelo Ministério da Justiça em 2018, aponta isso. Se projetarmos a proporção de mulheres negras e brancas teríamos uma estimativa de 25.581 mulheres negras em todo o sistema prisional e 15.051 mulheres brancas. A partir dessa estimativa, é possível calcular a taxa de aprisionamento para cada 100 mil mulheres maiores de 18 anos entre as populações de diferentes raças, cores ou etnias, aponta o relatório.

De acordo com o material, se pode afirmar que entre a população maior de 18 anos, existem aproximadamente 40 mulheres brancas privadas de liberdade para cada grupo de 100 mil mulheres brancas, e existem 62 mulheres negras na mesma situação para cada grupo de 100 mil mulheres negras, o que expressa a disparidade entre os padrões de encarceramento de mulheres negras e brancas no Brasil. A Paraíba, segundo este relatório, atingiu percentual de encarceramento de mulheres negras acima da média nacional. No Estado, 79% da população carcerária feminina é de mulheres negras, enquanto 21% é de brancas.

AÇÕES DE COMBATE A DESIGUALDADE

A Portaria nº 992, de 13 de maio de 2009, do Ministério da Saúde, instituiu no País a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, que tem por objetivo reduzir as desigualdades em saúde que acometem esta população, além de reconhecer que as suas condições de vida resultam de injustos processos sociais, culturais e econômicos presentes na história do Brasil.

Esta ação tem como objetivo a implementação das políticas de atenção, promoção e vigilância, realizando apoio institucional, formação, capacitações e articulações com secretarias e órgãos afins para a implementação da atenção integral a essas populações.

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