Foto: Divulgação

Com Roraima apresentando índices decepcionantes de imunização contra covid-19, o amontoado de gente ao redor do postinho de Amajari (RR) animou a coordenadora estadual de Vigilância em Saúde, Valdirene Oliveira. A alegria durou o tempo de uma injeção. A equipe que dividia o carro com ela explicou que as pessoas estavam sentadas na calçada para pegar o sinal de wifi.

Pfizer, CoronaVac e AstraZeneca andam menos populares que WhatsApp, Instagram e Facebook em Roraima. A consequência é a pior cobertura vacinal do Brasil. De acordo com o consórcio de veículos de imprensa, somente 55,28% da população tomou a primeira dose e 39,68%, a segunda. Mas estes dados estão desatualizados há alguns dias.

De acordo com a Secretaria de Saúde do estado “o Vacinômetro está sem atualização, em virtude da dificuldade de acesso aos sistemas do Ministério da Saúde, desde o ataque sofrido pelo Ministério que ainda não conseguiu restabelecer por completo o sistema SI-PNI (Sistema de Informação do Programa Nacional de Imunizações) para acesso ao banco de dados.”

Ainda de acordo com a nota, o órgão estadual afirma que tem mantido contato com o Ministério Saúde e “foi informado de que o Departamento de Informática do SUS (DataSUS) continua trabalhando para o restabelecimento das plataformas. E assim que estiverem em sua total funcionalidade, os dados do Vacinômetro serão atualizados”.

“Fake news” impedem vacinação, diz governo

A coordenadora da Vigilância em Saúde conta que as fake news, um dos maiores obstáculos ao programa de imunização, vêm justamente destes aplicativos. Foi pelo Facebook que Jhonny Gustavo Guedes, 46, sedimentou a crença de que a vacina engrossa o sangue, causa doenças cardíacas e até a morte.

“Hoje, meu maior problema é recusa. A população não quer se vacinar porque não acredita na vacina”, diz Valdirene.

A interpretação que lideranças religiosas deram à pandemia também atrapalha a imunização. A técnica em enfermagem Yara Aragão chegou em uma casa de Pacaraima, na fronteira com a Venezuela, oferecendo a vacina.

O pastor que visitava a família não sentiu constrangimento em comparar a equipe de saúde a enviados de Lúcifer. “Ele falou: ‘O inimigo manda emissário de casa em casa’. Ninguém tomou a vacina”, conta. Além da máquina de mentiras da internet e da pregação religiosa contrária, a campanha de imunização em Roraima enfrenta a politização da pandemia.

O trânsito de Boa Vista convive com pedidos de voto impresso e auditável em plotagens de carros que transportam seguidores de um de um presidente que dúvida da vacina. No campo político estadual, a população assistiu o governador Antonio Denarium (PP) trocar o secretário da Saúde seis vezes durante a pandemia.

Entre os ocupantes do cargo esteve Airton Soligo, que trabalhou como assessor do general Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde que criou dificuldades para compra de vacinas.

Vacina em domicílio

Na distribuição da vacina, a estrada é íngreme e tão ruim que nem a caminhonete 4×4 passa. Melada de suor pelo calor da Amazônia, a equipe de saúde serpenteia a pé barracos sem reboco escondidos no meio do mato. A mulher que carrega a caixa com os imunizantes escuta apelos. “Vai devagar”.

Conselho pertinente, mas dispensável. Antes dele, a agente de saúde já caminhava com o mesmo olhar zeloso que um vigilante de carro forte sai da agência bancária. Ela sabe que 30 doses de CoronaVac, 30 de AstraZeneca e 36 de Pfizer podem se perder num escorregão.

Esta tarefa custosa de se embrenhar no mato virou rotina. Por causa do baixo índice de vacinação, Roraima criou uma força-tarefa para visitar residências nos fundões de seus 15 municípios. Trabalhar nos grotões de Pacaraima significa ir muito longe para encontrar pouca gente.

Tanto empenho explica a cara de decepção da equipe quando a venezuelana Jessica Martinez, 22, recusa a primeira dose. Ela justifica que ouviu na mídia (Facebook) que a vacina mata gente. O marido, o venezuelano Jhonny Gustavo Guedes, 46, percebe o rumo da prosa e é rápido em inventar uma desculpa para fugir da conversa.

Diz que vai trocar de roupa para estar à altura da visita. Os agentes de saúde respondem que não precisa roupa de missa para tomar injeção. Jhonny fala que vacinas engrossam o sangue e causam ataque do coração. O diálogo ganha contornos de grupo de WhatsApp. Até a implantação de um chip é mencionada pelo casal. Jessica está irredutível, mas o marido cede. Enrola a manga da camiseta e toma injeção.

“Me pegaram desprevenido, então eu tomei.” Ele admite que se não fossem até sua casa, jamais visitaria um postinho. Os agentes de saúde se entreolham orgulhosos. Com o marido vacinado, o discurso de Jessica se torna mais radical, mas o tom de voz é vacilante. A agente de saúde usa aquele timbre amistoso da avó que tenta convencer o neto a tomar xarope. E funciona. Os dias de triunfo da fake news são encerrados naquela casa.

Mais uma vez a alegria dura pouco. Os agentes de saúde voltam para o asfalto e visitam pessoas que estão no prazo para segunda dose. Maria Lourdes Leite de Souza, 52, argumenta que a primeira dose de AstraZeneca causou dor no pescoço, enxaqueca e comprometeu os músculos. Se declarando cliente da Neosaldina, a cadeirante nega a vacina.

Fogo amigo

As equipes que partiram para diferentes pontos de Pacaraima se reencontram na UBS no meio da tarde. Chefe da equipe que vacinou o casal venezuelano, Yara Aragão recebe a segunda dose. A matemática não fecha. Ela já deveria estar na terceira dose, mas a profissional que ganha a vida oferecendo saúde tem um passado negacionista. “Eu não queria tomar porque pensava que a gente estava servindo de cobaia”, diz.

Enfermeiro responsável pela vacinação na UBS, José Luiz Gutierrez enxovalha as fake news enquanto saca o livro com dados de vacinação. Ele lê os números de 5 de dezembro: 34 doses aplicadas, 19 recusas. Luiz vira a página. Em 4 de dezembro, foram 19 vacinados e 11 recusas.

A invasão hacker no sistema do Ministério da Saúde impede a Vigilância em Saúde de Roraima de ter os números finais da força-tarefa. Os dados preliminares são de 10.442 doses aplicadas e 4.916 recusas em todo o estado, entre 2 e 12 de dezembro.

Pregação antivacina

A missionária Domingas do Carmo de Leite Jesus, 49, está no grupo que não quer saber de vacina. Ela explica que em 2014 o marido teve uma visão na qual Deus alertou que uma pandemia abalaria o mundo. De acordo com do Carmo, quando as primeiras mortes no Brasil começaram, houve uma nova aparição. Deus teria dito que surgiriam várias curas, mas todas seriam falsas. A proteção estava no divino e os remédios inventados pelo homem eram instrumento de uma ação do capitalismo satânico. Ele iria usar a morte para concentrar dinheiro e poder nas mãos de poucos.

O pastor Ribamar de Jesus, 53, é o homem que teve as visões. Ele afirma que não aborda a vacina em seus cultos e só trata do assunto quando procurado pelos fiéis. Muitos frequentadores da igreja partilham o ceticismo com o programa de imunização. Cabo do Exército, Miguel Pereira, 21, sempre se esquiva da vacina. Mesmo quando ela foi ofertada no quartel onde trabalha.

A Coordenadoria Estadual de Vigilância em Saúde pretende conversar com lideranças religiosas. Muitas vezes eles são a ponta de uma rede de desinformação que acaba tendo ligações com o Palácio do Planalto. “O presidente tem influência naqueles seguidores que brigam por causa dele, mas sozinho não faria tanto estrago. O maior problema são alguns líderes religiosos. Em local pequeno, o estrago causado por eles é maior”, diz Valdirene.

Politicagem na vacina Boa Vista tem números melhores que o restante do estado: 78% da população com a primeira dose e 56% com a segunda. Nada que satisfaça a superintendente municipal de Vigilância em Saúde da cidade, Francinete Rodrigues.

Ela estuda formas para chegar aos 90% de imunização. “A gente tem conversado com empresas para quem apresentar a carteira de vacinação ganhar descontos. Apresentar a carteira completa e participar de sorteios.”.

Francinete também vai entrar na guerra da informação. Agentes de saúde vão de casa em casa explicar que a vacina previne a forma grave da covid-19. A iniciativa tem aval das autoridades sanitárias do Estado. A Coordenadoria Estadual de Vigilância em Saúde apoia o planejamento de Boa Vista, mas ressalta que Roraima tem 40% do seu território inacessível por via terrestre.

Este trabalho de formiguinha no corpo a corpo, que já é trabalhoso por natureza, beira o impossível nas áreas rurais, comunidades ribeirinhas e indígenas. Mas enquanto as autoridades de saúde mostram alinhamento, os políticos trocam ofensas. Mês passado, o governador de Roraima acusou o prefeito de Boa Vista, Arthur Henrique (MDB), de fazer politicagem para que os hospitais ficassem lotados. O prefeito divulgou uma nota afirmando que as críticas do governador têm motivação eleitoral.

“As graves acusações, em tom político por conta da aproximação das eleições do ano que vem”, diz um trecho. Os obstáculos à vacina em Roraima vão dos gabinetes com ar-condicionado aos fundões da Amazônia. Mas os problemas foram colocados em segundo plano neste final de ano. O governo gastou esforços organizando a tradicional festa da virada no Parque Anauá, em Boa Vista.

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